segunda-feira, 7 de março de 2022

O cabelo

Minha avó era o tipo de pessoa que te educava com fábulas e histórias com lição no final. Se ela queria ensinar que era grave pegar o que não é seu, ela contava a história do cara que morreu depois de roubar uma agulha. Lembro que ela tinha inclusive histórias de bom comportamento em festas e eventos, tudo com um final bem trágico para as pessoas que não seguissem as normas sociais. Ela era uma contadora de causos excelente. Algumas dessas histórias eram muito boas, mas esses dias, nesses momentos em que tantos feminicídios e injustiças estão saindo a luz, eu estive pensando em uma especialmente complicada.

Na história, uma mulher estava com sérios problemas matrimoniais porque seu marido sempre encontrava um cabelo na comida. Ela colocava lenço no cabelo, protegia de todo jeito sua longa cabeleira. Mas pum, aparecia o cabelo. E o cara, revoltado com o descuido, gritava e batia na mulher. Um dia uma benzedeira revelou a raiz do problema: o culpado era o capeta. O tinhoso sempre vinha e colocava ali um cabelo na comida para provocar discórdia. Junto com a constatação veio a solução: o capeta não gosta de alho, tem que colocar alho na comida e ele vai desaparecer. Moral da história: sempre coloque alho na comida, assim o alimento sempre estará protegido.

Quem sou eu para duvidar da proteção espiritual oferecida pelo alho, mas alguém mais pescou o quanto essa história é delicada? Minha avó foi educada na roça pelo pai e pelos irmãos. Para ela tudo isso era muito natural... O homem ficava com ódio e gritava e maltratava, mesmo que fosse por um cabelo na comida. Era uma reação natural. Hoje a gente acha indignante, mas fica ali no subconsciente uma naturalização de tudo isso. Séculos de patriarcado não vão cair sozinhos, tampouco em um dia, ou em uma semana.

Muitas vezes a gente vê uma mulher que vive por anos, algumas vezes a vida inteira com o maltratador. E ela vai aceitando e o ciclo da violência dando voltas e voltas, e a gente julga: “porra, mulher, tem que ser mais forte, sai daí”. Mas para a mulher que está nesse ciclo as coisas são muito mais complicadas. A culpa é do tinhoso ou até dela mesma por não contar com a proteção de um alho qualquer. A gente foi educada assim, mesmo sem ter sido diretamente educada assim. Mesmo que sua mãe e sua família te falassem que “não tem que aguentar isso”, a sociedade colocava outra coisa no seu subconsciente.

No tempo da minha avó era obediência e silencio. O subconsciente coletivo leva muito tempo para ser mudado e precisamos começar de uma vez. É lindo marchar e pedir justiça, é fundamental. Mas é só uma parte da luta. Precisamos estar juntas e apoiar-nos também enquanto estamos vivas. Julgando menos, estendendo a mão, estando ali, gerando redes de apoio. Em lugar de julgar e condenar a outras mulheres precisamos gerar redes de apoio. Temos que ser a porta para que todas vejam que não é culpa do tinhoso nem do alho: é culpa desse cara que é capaz de machucar sua esposa, por um cabelo.

Nesse 8 de março desejo pra gente justiça e sororidade. É o mínimo que todas merecemos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Hugo

 Já faz uns dias que estou pensando em uma pessoa que não vejo há uns 20 anos. É muito louco que em plena pandemia eu comece a pensar em uma pessoa que morreu em 2013. É estranho. A gente se conheceu na escola, entre chicletes de menta, pitchulas, trabalhos escolares, fantasias e sonhos. Você me levava em casa e esperava pacientemente ser meu primeiro beijo. Não foi. Mas foi meu primeiro abraço, meu primeiro carinho, foi desses amores inocentes de adolescência. Sem peso, sem dor, sem consciência, sem medo. Só carinho mesmo. Goiânia é um ovo, mas eu nunca mais te vi. Guardei aquela caixinha cheia de te amos escritos com letra feia e empapada de algum perfume. E sempre tinha alguém que me contava de você. Da sua filha, da sua moto. E um dia, da sua morte.

É estranho pensar que quando você morreu a gente ainda era tão jovem. Você também era filho único. Pensei na caixinha de te amos, no perfume, na sua mãe. A gente dançando Ana Júlia, inventando uma música de metáforas, o professor de biologia, filmes e redações. Eu queria ser jornalista. Queria muito e achava que ia mudar o mundo discutindo e cantando Legião Urbana. Quase 20 anos que não te vejo e quase 10 que você morreu. Mas é uma loucura que algumas vezes ainda lembro de você e penso em como seria sua vida se você estivesse vivo. Sua filha já deve ser adolescente. O professor de biologia continua igual. É estranho pensar que a vida um dia existe e ao dia seguinte não mais. Mesmo sem pandemia. Cara, um monte de gente morreu em uma pandemia louca, sabia? Mas você foi embora antes e nem viu. Quando você morreu, o Facebook tava começando a bombar no Brasil. Ninguém sabia quem era Bolsonaro, ninguém imaginava que ia rolar essa pandemia um dia. Você sabia que eu mudei pra Bolívia? Quando te conheci pensava no Egito, pensava em mil países, mas nunca tinha pensado em viver na Bolívia. A vida é muito louca, Hugo. E só queria que você soubesse que de vez em quando penso em você e ainda agradeço sua ternura. E espero que um dia nos encontremos para rir como loucos outra vez das insanidades da vida.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Agosto

Para os povos andinos, agosto é o mês em que começa a colheita. É também o mês em que se alimenta a mãe-terra, que tem fome e abre a boca para receber as oferendas. Aqui não existe o diabo. A sua oferenda tem a cor da sua intenção. Mas que fique claro: se você usa essa energia para machucar, ofender ou prejudicar, cedo ou tarde a terra cobra.

Gosto muito desse mês e de toda a carga simbólica que ele traz. Uma coisa de agradecer, celebrar e ao mesmo tempo de preparar a terra para um novo ciclo. Por isso escolhi reativar o Sussurro nessa data. Sei que faz tempo, mas tenho saudade demais desse cantinho onde posso transbordar amor e ideias. Venho ensaiando esse momento há tempos e talvez a reflexão da lua minguante junto com a explosão criativa de agosto me ajudaram a voltar de uma vez.

Escrever é vida, é medicina. Voltar aqui é parte da minha colheita e ao mesmo tempo de uma bonita preparação para um novo ciclo.

Jallalla Pachamama. E que seja doce.

 


 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Ninguém

Todos os dias ela se sentava na saída de água à esquerda da rodovia. Uma placa de cimento a um lado, uma construção feita por algum prefeito em algum momento para evitar desastres. Ela era o desastre que não pode ser evitado.
Todos os dias pelo menos 300 mil pessoas passavam por ela no caminho ao trabalho. Ninguém sabia quem era ela. Ela era invisível. Sentada no sol, agarrando um trapinho de lã. Ela era o que ninguém quer ver, o que ninguém quer ser, o que todos temem. Ninguém nunca via seus olhos, porque ela não levantava a cabeça há anos. Ela tinha medo, tinha frio. Por isso todos os dias das 10h até as 16h, ela ficava ali sentadinha. Ela não esperava nada da vida. Só um pão e o álcool da noite, que ela bebia para evitar sentir a fome lacerante e o frio doloroso.
Um dia, ela apareceu com um cachorro sarnento. O animal sangrante se sentava ao seu lado. E os dois ficavam ali, sentados à margem da rodovia, cada um sangrando a sua maneira. À margem da dinâmica louca da cidade. À margem das ambições, dos sonhos e desejos. À margem da vida.
Quando o magro cão foi atropelado por um carro de entregas, a senhora pela primeira vez em anos levantou a cabeça. O motorista foi o detentor do segredo: ele viu os olhos que ninguém pode ver em anos. Congelado pelo choque, caiu no abismo.

Na manhã do dia seguinte a polícia encontrou um corpo do sexo feminino congelado em um dos escapes de esgoto da cidade. Ninguém buscou o corpo, ninguém fez enterro, ninguém chorou por ela. Ninguém.

sexta-feira, 8 de março de 2013

A mulher habitada, a mulher habitante Gioconda Belli, mais que genial



"Rompo este huevo y nace la mujer y nace el hombre. Y juntos vivirán y morirán. Pero nacen nuevamente. Nacerán y volverán a morir y otra vez nacerán. Y nunca dejarán de nacer, porque la muerte es mentira."

Memorias del Fuego - Eduardo Galeano

Depois de alguns anos e umas tantas experiências vividas, voltei a ler A mulher habitada de Gioconda Belli. E uma vez mais me emocionei. Literatura orgásmica, deliciosa, forte e delicada. 

Realista sem abrir mão do fantástico, Gioconda nos envolve com a história de Itzá, uma indígena que reencarna numa laranjeira e por meio dos seus frutos, entra em Lavínia, uma jovem burguesa nicaraguense. A construção da personagem Itzá, mulher indígena revolucionária que morre lutando ao lado do seu companheiro, se mescla com a construção da personagem Lavínia, que busca seu lugar no mundo e se constrói com a ajuda de diferentes mulheres que cruzam seu caminho durante a ditadura de Somoza.

A autora constrói a identidade das protagonistas tecendo conflito por conflito, como um tecido fino, fio a fio, e no fim, o individual de Lavínia se agarra a um processo revolucionário para uma construção coletiva. Deliciosamente sedutor e intenso, A mulher Habitada é um encontro entre a prática política revolucionária e numerosas vozes de mulheres latino-americanas. Sandinismo, marxismo e feminismo, em discursos que se completam e, em alguns momentos, se contradizem. 

Dizem que sim existiu um cacique Yarince em Matagalpa que, tendo sua companheira sempre ao seu lado, lutou contra os espanhóis. Triste e feroz história da América Latina. Os tempos mudam, as roupas mudam, o modo de se expressar muda. Mas o pano de fundo é sempre o mesmo. Nas palavras de Itzá “nós duas vivemos a mesma coisa, o mesmo sangue, só o tempo muda”. E nada morre porque tudo volta a nascer - o amor, a fúria, a luta.

Fáguas pode ser, segundo Gioconda Belli, qualquer lugar da América Latina. E todas nós somos Lavínia-Itzá – assim como Pagu, como Domitila, como tantas de nós que morreram lutando. A mulher habitada – pelo nosso contexto, pelo nosso passado, pela história de nossa gente e nossos antepassados. A mulher habitante, militante, política. A mulher violada - fisicamente, psicologicamente. Comparto com vocês um pouco de tão bonita reflexão. Deixo aqui um pedacinho da poesia final do livro, a despedida de Itzá.

La luz está encendida. Nadie podrá apagarla. Nadie apagará el sonido de los tambores batientes.
Veo grandes multitudes avanzando en los caminos abiertos por Yarince y los guerreros, los de hoy, los de entonces.
Nadie poseerá este cuerpo de lagos y volcanes, esta mezcla de razas, esta historia de lanzas; este pueblo amante del maíz, de las fiestas a la luz de la luna; pueblo de cantos y tejidos de todos los colores.
*A imagem desse post é uma obra do muralista nicaraguense Roberto Loaisiga Mendez, "A mulher revolucionária nos anos 80"

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Vida no Eixo

Essa reportagem foi escrita em  2008, como trabalho para minha especialização em jornalismo literário. Fico tanto tempo sem postar aqui e depois venho com coisa velha, né gente. Mas a coisa é que esse material nunca foi publicado. Foi lido por no máximo quatro pessoas especiais para mim. Nesse momento eu queria compartilhar uma coisa especial com vocês. E decidi publicar isso, praticamente intacto, inédito, tão pessoal e tão meu.
Eu não sei como estará o Elber (personagem dessa história). Como estou na Bolívia há quase três anos tampouco sei como será andar no Eixo Anhanguera nesse momento ou quanto custará. Mas isso não é tão importante. O mais importante é a vontade de viver que o Elber tinha nesse momento, a história que é universal e que acontece com tantos meninos do Brasil e de outros países - nem todas com finais felizes.
Mas chega de blá blá blá. Espero que vocês gostem. Boa leitura.

Barulho, confusão, correria. Todos os dias milhares de pessoas vão até um dos pontos do Eixo Anhanguera, em Goiânia, para pegar o grande e sempre lotado ônibus que atravessa a cidade. Do terminal do Novo Mundo ao terminal do Padre Pelágio são aproximadamente 14 quilômetros. É um meio de transporte barato, embora tenha mais que dobrado de preço no último ano. Com R$ 1, qualquer pessoa pode ir de uma ponta à outra da cidade. Não, não é um passeio turístico. Para quem não está acostumado, o cenário pode ser assustador.
Não que seja perigoso ou ofereça risco de vida. Ta, há sim um risco. Mochila nas costas é pedir para ser assaltado, por exemplo. Mas o Eixo, na verdade, assusta bem mais do que oferece perigo. Já presenciei briga de faca, ameaça de morte e discussão entre mulheres traídas (que incluiu o famoso puxa-puxa nos cabelos), mas tudo é apenas confusão. Isso dentro de um ônibus totalmente lotado, um lugar onde um simples movimento com o pé é difícil. A cada plataforma pessoas são cuspidas do veículo, enquanto outras se esforçam para entrar nele.
No meio disso tudo, um número sem fim de vendedores ambulantes tenta ganhar seu sustento. Alguns apenas oferecem seus produtos, outros cantam (sim, no meio da multidão há os “artistas do Eixo”), e outros ainda só percorrem os carros mostrando o que têm a oferecer. Elber Rodrigues não é como a maioria. Mesmo quem jamais cogitou a possibilidade de comprar tampinhas para o tanque no caminho do trabalho, muitas vezes muda de ideia.

- Eu tenho aqui uma coisa que vai fazer todo mundo enlouquecer. Um produto como nunca se viu igual. A tampa que vai fazer seu tanque ser mais eficiente e feliz. Quem vai querer? Quem quiser levante o braço, por favor. Calma gente, não precisa levantar o braço todo mundo ao mesmo tempo. Opa! Cuidado com o tumulto! Tem tampinha pra todo mundo!

O moço tem sorriso branco e alegria cativante, parece que nasceu para o ofício de comunicar. Ganha seu dinheiro e, ao mesmo tempo, alegra. Gente que acorda todos os dias às quatro da manhã para garantir o salário mínimo se esquece dos problemas e das bocas cheias de fome dos filhos para sorrir com as brincadeiras do rapaz. As garotas se assanham:

- Olha ali que moço bonito vendendo tampinhas...

Mas não adianta que o coração dele já tem dona. O nome ele não revela, mas foto que tirou da escolhida no celular ele mostra. A eleita é uma garota que tem os mesmos ideais e crenças. Elber é de uma igreja neopentecostal, Comunidade Shalom. Namoro lá não existe. Mas amor, ah esse não tem como controlar.

- Como você faz?
- A gente ora para saber se é vontade de Deus. Se tudo der certo, não tem agarração nem falta de respeito. Beijo só depois do casamento.

Hoje ele é assim. Deus está em todos os seus planos e acima de todas as coisas. Elber quer ser pregador. Mas nem sempre as coisas foram desse jeito. Muito aconteceu que fez por várias vezes com que os caminhos se modificassem. Em algumas se tornaram totalmente confusos. Em outras pareciam beco sem saída. O vendedor de tampinhas de voz clara e sorriso franco foi usuário de drogas por cinco anos.

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Ele adorou a ideia de virar história. Não vamos dizer que foi apenas pelo altruísmo de se tornar um exemplo de vitória. Aos 21 anos, impossível não ter aquela pontinha de vaidade. Não foi fácil encontrar Elber. Além das vendas no eixo, ele tem compromisso com a Igreja, meio distante do local onde mora. Ele é operador de som. Quartas, sábados e domingos quem comanda o áudio nos cultos é ele. Já trabalhou como operador de som em festas de todos os tipos, e tal experiência tem sido importante nessa nova fase da vida.
Elber ainda mora na casa de recuperação onde há um ano e cinco meses chegou para se recuperar das drogas. A casa é afastada da cidade, num conjunto de chácaras longe de tudo. O caminho não é fácil para quem se aventura pela primeira vez e, sinceramente, eu não me arrisco a tentar passar por ele à noite. Não que seja perigoso. Mas sem nenhum tipo de iluminação, a estrada de terra é quase um convite para se perder. 
Elber foi à frente, de bicicleta, guiando meu carro. Ele corria e, no meio da estrada, fazia manobras geniais com seu meio de transporte. Uma empolgação só, quase um show particular. De vez em quando olhava para trás, mas parecia não se importar com a dificuldade que meu pobre carro enfrentava para chegar até ele. Entre casas enormes, algumas cheias de luxo, estava a simples morada do vendedor de tampinhas.
O complexo é formado por um prédio principal, onde estão os quartos e o refeitório, uma oficina de marcenaria onde são fabricados os materiais que serão vendidos pelos internos e o resto é improviso de diversão: um campo de futebol na terra e, ao lado, uma área para ginástica. A “sala de ginástica” foi construída pelos próprios rapazes. Nela, alguns pesos foram feitos artesanalmente com tijolos e concreto. No campo, uma turma jogava bola animadamente. 
Enquanto eu conversava com Elber, embaixo das diversas árvores da entrada, a vida na casa seguia seu ritmo normal. Na cozinha, os escalados para fazer o jantar já trabalhavam às 17h. Fogão a gás ali, nem pensar. A comida é feita em fogão à lenha. Fogão construído pelos rapazes, lenha trazida e cortada por eles; mão de cozinheiro, também deles. De avental, trabalhavam concentrados, um ajudando o outro, mas tudo sob a coordenação de apenas um cozinheiro principal, que muda sempre de acordo com a escala.
O banheiro é comum: um apenas para todos, o que não é necessariamente um problema já que só há homens na casa. Alguns quartos não possuem portas. Lençóis floridos faziam o papel de guardiões da entrada. No quarto de Elber, dois beliches e uma cama. Cinco pessoas apertadas num quarto pequeno, onde duas já viveriam normalmente em pé de guerra pela disputa de espaço. Bagunça e muita desordem, coisa que o rapaz se apressa em explicar:

- Lugar onde só mora homem, já viu.

A pequena construção de quartos apertados não possui forração. Entre 30 e 45 homens, segundo Elber, vivem ali. Número exato não se sabe. Todos os dias homens e meninos entram e saem da casa. Alguns dispostos a cortar de vez as drogas de suas vidas. Outros nem tanto. Mas apesar da vida quase que de improviso, todos parecem felizes. Do passado, um rosto marcado de quem já conheceu a face mais impiedosa da vida. Olhares algumas vezes perdidos no horizonte, outros concentrados em trabalhar para não pensar nas tragédias vivenciadas. 
Elber é assim. Durante a conversa, os olhos doces e inquietos de menino recém saído da adolescência se tornavam duros, sérios. Em outros momentos, começavam a lacrimejar, quando o menino então desviava o olhar para algum detalhe da casa. O sorriso maroto, ao lembrar do sofrimento da mãe, ficava sem cor.
Ele conta a própria história como quem lembra de alguma narrativa distante, um conto de terror cujos capítulos não são fáceis de serem lembrados. Elber Rodrigues, corpo franzino, espírito cheio de sonhos. Quem vê o vendedor alegre no ônibus, ri com suas piadas, esquece das próprias desgraças por alguns instantes, sem saber que também a vida dele já foi desgraça – e graça.
Muitas vezes, nos ônibus, ele não cita o nome da casa de recuperação. Quando se fala nesse tipo de instituição no Eixo, as pessoas ficam desconfiadas. O local já foi palco de casas que alugavam o nome para jovens trabalharem e muitos agiam de má fé. Não é o caso de Elber, mas pelo histórico desse tipo de trabalho muitas pessoas olham de um jeito diferente. 

- O que atrapalha mais as vendas?
- Muita gente pensa “ah, essa pessoa já usou droga, fumou maconha, já roubou, fez tudo isso”. E não acreditam na recuperação, não acreditam que Deus pode mudar, pode recuperar as pessoas. Só olham o passado e não veem que pode ter mudança e transformação.
- É difícil ter uma segunda chance?
- A maioria das pessoas não acredita em regeneração.

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O trabalho desenvolvido no Eixo, além de ajudar a casa, funciona como terapia. Cada um tem um trabalho, de modo que ninguém fica à toa. Há a fabricação de tampinhas, a venda delas, a confecção de rodos na marcenaria e a venda deles de porta em porta. Assim que chegou, Elber foi para a oficina e por esse motivo nunca ficou responsável nem pelos banheiros nem pela cozinha na escala. Quando ele chegou, só funcionava o trabalho com os rodos. Elber fabricava em algumas horas do dia. Depois, cabelo arrumado e fala ensaiada ia de porta em porta:

- Muito bom dia minha senhora. Sou da Casa de Recuperação Shalom e estou vendendo esses rodos para auxiliar nas despesas da nossa casa de recuperação...

E blá, blá, blá. Lá ia o menino argumentar e contra-argumentar em todas as casas, até que a meta do dia fosse cumprida. Um dia, um obreiro da casa teve a ideia da tampinha para o tanque, e daí nasceu a função de Elber. Além da venda dentro do ônibus, há também um grupo que vende nos sinaleiros. O escolhido para falar no meio da multidão, tarefa que exige especial habilidade de comunicação, foi Elber. Não é fácil conseguir chamar a atenção das pessoas quando elas estão tensas e concentradas em não serem esmagadas pelo companheiro de viagem.
O começo para ele não foi fácil. Que ele tem menos vergonha que os outros garotos, é fato indiscutível. Mas nos primeiros dias as primeiras palavras saíam como agulhas espetando a pele. Nada que Elber não conseguisse superar. Era olhar para cima e mandar ver a ladainha que logo foi tomando outras formas, criando vida, até ficar quase que independente de seu criador e puxar a atenção de quem quer que estivesse dentro do carro gigantesco.
O lado bom do trabalho, para ele, é exatamente tudo aquilo que mais agrada as pessoas curiosas: conhecer. Elber faz novas amizades, descobre coisas diferentes e informações que até então nem cogitava descobrir. As drogas o atrapalharam de ver o que aos poucos descobre no Eixo. A vida pulsando de verdade e sem interferência artificial.
Quando vivia em sua cidade Natal, por várias vezes foi convidado a ir para a casa de recuperação onde estava o irmão, mas não queria nenhum tipo de mudança. Gostava da vida que tinha. Em certo momento se viu numa situação complicada, que fez com que visse que necessitava de ajuda. Que coisa foi essa que o fez querer mudar de vida, não fala. Desvia o assunto, comenta outras coisas, explica a dificuldade em se recuperar. Mas faz questão de não mencionar o momento exato em que decidiu ir para a casa e o fator que desencadeou tal vontade. Pelo que conta, quando chegou à casa ainda não queria largar as drogas. 

- Como foi no começo?
- A gente chega aqui não querendo uma mudança de caráter. Chega com tudo meio atribulado. Mas aí você vai percebendo que a vida que você levava num era vida. 

Elber nunca tinha vindo a Goiânia antes do tratamento, e por ele já não estaria mais aqui. Sente saudades de Jataí, da família, de sua casa, suas coisas. Mas considera que a casa que o ajudou precisa agora de ajuda, e vai ficando para com o trabalho colaborar com algo.
Sempre viveu com a mãe e os três irmãos maternos. Por parte de pai tem mais três irmãos, com quem não tem o mínimo contato. O pai, só conheceu depois de grande, aos 16 anos. Como sempre foi simpático e divertido, Elber atraía muitos amigos que buscavam, nele, exemplo. O primeiro cigarro de maconha foi oferecido entre brincadeiras, assim como os outros entorpecentes que usou, entre eles crack e cocaína. A culpa de ter ingressado no vício, ele atribui a si mesmo e à própria curiosidade. Mas acredita que as companhias também influenciaram.

- Má-influência, comecei a enturmar com pessoas erradas. Fui me envolvendo, quando eu vi já estava numa situação bem difícil.

Elber descreve com destreza todos os caminhos que percorreu até buscar ajuda em Goiânia. Ele coloca as drogas numa escala cronológica com fim trágico: Acaba com a vida moral, depois com o caráter e, por fim, mata. Os motivos que levam ao pior são vários. Porque deve-se um traficante, ou porque já tem-se problema com a polícia. Rouba aqui, rouba ali. Traficante não quer saber, só quer receber. Ele vendeu a droga. Não quer saber se você usou, se tem ou não dinheiro para pagar. Ele quer receber. 

- E como é a vida nas drogas?
- Quando você usa a droga, você tem amigos, tem tudo. Mas quando você não tem, fica você e a depressão. Eu ia afundando. Quanto mais eu tentava sair, mais aquela situação me oprimia, me fechava. Quando a minha própria mãe não tinha mais esperança de me ver mudar, aí que eu fui ver a situação que eu tinha chegado. Onde eu tinha entrado. Eu já estava vivendo igual um mendigo. Quem usa droga não toma banho. São vários dias sem tomar banho, enfurnado no meio do mato, em lugares que não têm uma cama pra dormir, nada. Eu já fui preso uma vez, por causa de roubo. Mas Deus sempre me livrou, porque não levei um tiro, não aconteceu coisa pior. Hoje eu sinto prazer de viver, vivia para a droga, hoje vivo para mim mesmo. 

A palavra para Elber é esperança. Fé em dias melhores e em um futuro novo em folha. Recomeçar. Quem o vê falando ou lê as coisas que articula, não imagina que o rapaz cursou apenas até a quinta série primária. As drogas o fizeram abandonar os estudos. O conhecimento de teorias e histórias oficiais é pouco, mas o que aprendeu da vida é mais do que muito doutor nem imagina. O que sabe é que mesmo não tendo noção de quem foi Nietzche ou Montesquieu, se quer mudança de vida precisa seguir em frente e aprimorar o dom de comunicar que possui. Colegas, companheiros de infância, ainda vivem o terror que o rapaz deixou no passado. E ele não pretende desistir de mostrar a essas pessoas a direção do novo caminho que descobriu.

- Não é porque não tenho estudo que eu não devo saber falar com as pessoas. O pouco que eu sei tento passar, que é não querer viver o que eu vivi.

Respira fundo, fecha os olhos, sorri.

- Vai querer jantar com a gente?



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Borboletas e furacões


Um dia de desastre, um dia de beleza. Os livros embaixo do braço, a crença de que todavia se pode fazer alguma coisa pelo mundo, por esse seu mundinho medíocre, sua bolha delineada com a imaginação débil. Do alto dessa suposta sabedoria ele acha que conhece pontos fracos dela, pensa que conseguiu decifrar sua debilidade. E ignora tanta fortaleza. "Não tem problema", ela pensa. "É uma carta na manga". Ela escuta essa musica. Essa musica que ele nunca dedicou, mas que escutaram juntos. E parece tão bonito. E ela decide: é nossa. Borboletas e furacões. E ele nunca soube.

Ele nunca sabe tanta coisa. Tanta coisa desse mundo particular, tão privado, tão fechado, tão solitário. Tão tristemente solitário, ainda que acompanhado. É a solidão mais triste, dizem. A solidão acompanhado. Esse monte de gente, essas bocas que riem devorando almas, olhos sedentos de algo, ouvidos fechados para o outro. Esse monte de gente que não enche vazio. Depois de tudo, ela olha a cama desfeita. O corpo imóvel, traste de carne do sexo masculino, ainda jaze ali, fazendo volume. Ela fecha os olhos. Sente o ar abafado do apartamentinho. Agarra os sapatos. E de pés descalços sente o chão frio e as migalhinhas no piso descuidado. Abre a porta. E com uma sede desesperada, a cidade a devora. Borboletas e furacões.