quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Preparação

Os dedos tocam o rosto. A pele macia, o toque, o calor da mão que conseguia cobrir-lhe a bochecha. Assim ele lhe desvendava, lhe descobria. A deixava sem defesas e fazia tremer todo o seu corpo. Abraço. Miradas suaves. Perfeição. É conto de fadas, a união do dual, a complementaridade. Yin e Yang. O reencontro.
Abre os olhos. Vazio. Nada. Não há mais sonho. Os olhares são duros. Caminha e sente os cristais que penetram finos os pés desnudos. O piso amadeirado se tinge de vermelho. Pela janela entra um vento frio, cortante. Já não há borboletas nem sol. Chuva? Não. O vazio do frio inexplicável. Mas vai passar. E ela sabe.
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Em um mês chega a primavera. Só um mês? É necessário preparar-se. Senta-se no sofá quente de lembranças. Olha os pequenos pés delicadamente feridos. As cortinas já não voam. Tira da pele um por um os delicados cacos.
Mete os pés na bacia que jaz ao lado com sua água transparente. A água fria a tira de seu torpor: a vida não é só memória e sonho. Depois do choque sente entre os dedos um estranho prazer: a vida tampouco é apenas realidade. Enxuga os pés, cada curva, os dedos, as unhas, o calcanhar. Olha os pequenos pontos rosados. Já não há sangue e até consegue ver beleza nas feridas.
Fecha os olhos. Respira fundo. E resolve voltar a sonhar em outro contexto.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Miradas

- O problema é que você olha as pessoas nos olhos.
- ?????
- É, não se pode olhar as pessoas nos olhos.
- Por que?
- É perigoso, avisam até nos aeroportos. Você dá abertura para que as pessoas cheguem até você.
- Isso é ruim?
- É perigoso.
- Não dizem que os olhos são as janelas da alma? Pois é, o problema é que sou muito bisbilhoteira, adoro uma janelinha.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

A menina dos sapatinhos vermelhos

- Rasga-me com a força de uma espada forjada em mil ressentimentos.

Assim começava a fala da menina que não sentia sua vida clareada pela luz da lua cheia feita para os amantes. Sentada embaixo de uma árvore sem folhas, ela só sabia olhar as estrelas com os olhos opacos. Olhos que só podem ser tão apagados porque já brilharam demais. Como pode algo tão recente doer tanto? Doía. Com aquela dor estranha e silenciosa que corrói as entranhas, fechou os olhos por uns instantes. Estava cansada. Tão jovem e tão cansada. A verdade é que não sabia por onde ir. Sentia-se cansada e estúpida, o tipo de pessoa que jamais poderia ser amada de verdade por alguém.

- Sangra e faz jorrar esses ciúmes amargos e doloridos, coração.

Era o apocalipse interno. A força de mil dragões torturando-a e rindo de sua agonia. Por que amar dói tanto? Era a única coisa que ela queria entender. A pobre menina de sapatinhos vermelhos que não tinha estrada amarela para seguir, só um amor gigantesco e uma vontade enorme de gritar. Quando ouviu o grito da louca que cantava na esquina, sorriu. Queria ter a liberdade dos loucos, que em seu delírio não se importam com quem quer que seja, só com os próprios devaneios, com os amores de sonho. Deve ser bom ter um amor de sonho. Desses em que não existe o perigo de cair da cama e esborrachar-se na realidade dura e gelada. Que merda de realidade, menina. Você deveria mesmo ter seguido Alice e ficado pelo País das Maravilhas, que aqui só há dor e ressentimento. Respirou fundo. Sentiu o ar quente e seco agredindo suas narinas.
Depois de chorar lágrimas de açúcar amargo, a menina adormeceu. Acordou com um incômodo nos pés. Durante o sono os pés cresceram atrevidos, esborrachados e feios, e rasgaram o delicado sapatinho vermelho-brilhante. Pronto. Agora era seguir descalça mesmo, sentindo a rudeza das pedras e a aspereza da terra. Era sua vez de, despida de tudo, encarar a vida. E dessa vez nem o Mágico poderia intervir por ela.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A gota

A gota caiu do cabelo e inundou toda sua vida como uma forte tempestade. Por alguns segundos o frio quis se aproximar, mas com um leve movimento de cabeça viu os olhos que fariam ferver o seu corpo mesmo no meio da neve. A água dos cabelos evaporou rapidamente com o calor do encontro de corações. Lá fora as nuvens descobriram devagar o pico nevado do Illimani. O sol nasceu. A cidade despertou. As pessoas movimentavam-se apressadas nas calçadas estreitas. Ali, dentro da casa, o relógio resolveu congelar seus ponteiros: o tempo pertence a eles.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Literatura ordinária

Esse é um projeto do jornalista, escritor e amigo do peito Fellipe Fernandes (!). A ideia é simples. Várias pessoas escreveram um conto com o seguinte início: Depois de limpar as marcas de pasta de dente na pia...

Lá tem um conto meu e vários outros muito bacanas também. Vale a pena conferir:
Literatura ordinária.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Desafio

Esse é o rótulo da cerveja boliviana Paceña Huari - que aliás é muito boa. Nele tem o Chaves (o do seriado do SBT, com s, não o da Venezuela) e um elefantinho. Confesso que quando me falaram disso eu só achei o Chaves e me ferrei no elefantinho, mas para que eu me sentisse inteligente e superior, um argentino que estava junto não conseguiu achar nem o Chaves. Quem achar os dois primeiro vai ganhar um prêmio que vou trazer de La Paz.

ATENÇÃO: Não escrevam suas respostas nos comentários e sim enviem para lidia.amorim2@gmail.com.



VALENDO!

P.s.: Tem que explicar direito onde está o elefantinho, ta? Inventar elefantinhos não vale =D

UP: JÁ COMPREI O PRÊMIO, QUE É LINDO LINDO. ATÉ COMPREI UM PRA MIM TB. COMO EU JÁ DISSE NOS COMENTÁRIOS, MUITA GENTE ACHOU O ELEFANTINHO E DUVIDOU NA HORA DO CHAVES, MAS É ISSO MESMO, MINHA GENTE: O CHAVES TA NO BARRIL. ;D E O ELEFANTINHO TA NO CANTO INFERIOR ESQUERDO. BEIJO E AMANHA ESCREVO AS NOVAS AQUI DO ALTIPLANO!

Latinoamérica

"Hoje vejo o mundo em amarelo
Já houveram dias azuis e outros verdes
E sinto minha necessidade de amar latente
É tão forte que incomoda
Que dói, sangra e mancha meu tapete.
Enfrentar os medos e viver
Não há caminho alternativo
Os senderos estão claros
Eu sei que preciso sair.
Gosto de ver o sol
E de sentir o gosto salgado do mar
É, eu sei, eu preciso viajar
Aquela índia que me chamou da outra vez voltou
Me tocou e me disse pra viver
Pra tomar chá no Suriname
Pra morrer de frio no Yuni
E pra correr pelo Atacama
Essa lágrima insistente não cai
O coração é duro e grande
E cabe tanta coisa que a cabeça não entende
O meu sorriso só vem com o sol
Mas um sol de latinoamérica
Eu preciso ver nascer."

Amanhã estou indo novamente para a Bolívia, país que definitivamente ganhou meu coração. Calma gente, ainda não é para sempre, volto no comecinho de março. No decorrer da viagem vou postando algumas coisas, não pretendo abandonar o blog de novo.
O texto acima é da amiga e jornalista Ana Lúcia Nunes, pessoa que admiro muito e que me ajuda a ter mais coragem com seus conselhos loucos. Uma parceira no sonho de caminhar pela América Latina.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Democracia?



Policial reprime ato contra a corrupção diante da Câmara do Distrito Federal, no dia 11 de janeiro. A foto é de Carlos Silva. Do blog do jornalista Armando Antenore.

E não foi só a repressão. Vale lembrar que houve uma denúncia anônima (exibida no Jornal Nacional) de que o governador do Distrito Federal José Roberto Arruda teria obrigado funcionários a formarem o tal Movimento Pró-Arruda, isso para rebater os protestos contra a corrupção.

ANO DE ELEIÇÃO, GENTE. Vamos ter memória, ok?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O grito


Enjoei de ser tom pastel. Sinto no peito a dor de quem precisa de explosão. Quero amarelo brilhante, laranja, vermelho sangue. Quero o grito, o berro. O sussurro dolorido e gostoso que arrepia os pêlos da nuca. A paz de ser intensa. De ser forte. De ser mais. Quero o corpo que geme e se contorce. Quero a água gelada que desce doendo no peito, a cachaça que rasga a garganta. Os cabelos ao vento, a paixão que arrebenta limites e esquece fronteiras. O beijo que consome, a mordida que deixa marcas. A mão que agarra pela cintura, puxa os cabelos e acaricia o rosto. A revolta que arrebenta depois de anos de opressão. É sede de infinito, do que não tem nome, do que não tem explicação. Quero me consumir numa chama eterna de amor. Desejo e luta. Revolução.

*Foto de Erica Gonsales do blog Malagueta.