segunda-feira, 7 de março de 2022

O cabelo

Minha avó era o tipo de pessoa que te educava com fábulas e histórias com lição no final. Se ela queria ensinar que era grave pegar o que não é seu, ela contava a história do cara que morreu depois de roubar uma agulha. Lembro que ela tinha inclusive histórias de bom comportamento em festas e eventos, tudo com um final bem trágico para as pessoas que não seguissem as normas sociais. Ela era uma contadora de causos excelente. Algumas dessas histórias eram muito boas, mas esses dias, nesses momentos em que tantos feminicídios e injustiças estão saindo a luz, eu estive pensando em uma especialmente complicada.

Na história, uma mulher estava com sérios problemas matrimoniais porque seu marido sempre encontrava um cabelo na comida. Ela colocava lenço no cabelo, protegia de todo jeito sua longa cabeleira. Mas pum, aparecia o cabelo. E o cara, revoltado com o descuido, gritava e batia na mulher. Um dia uma benzedeira revelou a raiz do problema: o culpado era o capeta. O tinhoso sempre vinha e colocava ali um cabelo na comida para provocar discórdia. Junto com a constatação veio a solução: o capeta não gosta de alho, tem que colocar alho na comida e ele vai desaparecer. Moral da história: sempre coloque alho na comida, assim o alimento sempre estará protegido.

Quem sou eu para duvidar da proteção espiritual oferecida pelo alho, mas alguém mais pescou o quanto essa história é delicada? Minha avó foi educada na roça pelo pai e pelos irmãos. Para ela tudo isso era muito natural... O homem ficava com ódio e gritava e maltratava, mesmo que fosse por um cabelo na comida. Era uma reação natural. Hoje a gente acha indignante, mas fica ali no subconsciente uma naturalização de tudo isso. Séculos de patriarcado não vão cair sozinhos, tampouco em um dia, ou em uma semana.

Muitas vezes a gente vê uma mulher que vive por anos, algumas vezes a vida inteira com o maltratador. E ela vai aceitando e o ciclo da violência dando voltas e voltas, e a gente julga: “porra, mulher, tem que ser mais forte, sai daí”. Mas para a mulher que está nesse ciclo as coisas são muito mais complicadas. A culpa é do tinhoso ou até dela mesma por não contar com a proteção de um alho qualquer. A gente foi educada assim, mesmo sem ter sido diretamente educada assim. Mesmo que sua mãe e sua família te falassem que “não tem que aguentar isso”, a sociedade colocava outra coisa no seu subconsciente.

No tempo da minha avó era obediência e silencio. O subconsciente coletivo leva muito tempo para ser mudado e precisamos começar de uma vez. É lindo marchar e pedir justiça, é fundamental. Mas é só uma parte da luta. Precisamos estar juntas e apoiar-nos também enquanto estamos vivas. Julgando menos, estendendo a mão, estando ali, gerando redes de apoio. Em lugar de julgar e condenar a outras mulheres precisamos gerar redes de apoio. Temos que ser a porta para que todas vejam que não é culpa do tinhoso nem do alho: é culpa desse cara que é capaz de machucar sua esposa, por um cabelo.

Nesse 8 de março desejo pra gente justiça e sororidade. É o mínimo que todas merecemos.

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