sábado, 31 de outubro de 2009

Enfim, Bolívia! - Parte 2 - La Paz Encantada

Duas semanas e meia em La Paz. Quase vinte dias sob as bênçãos dos Andes, vivendo com a intensidade de quem sabe que tudo que é bom passa rápido demais. Peço desculpas à galera que acompanha o blog por não postar antes, mas é que quando se tem tanta coisa para fazer e viver a gente vai agarrando cada novidade com a ânsia de um náufrago. Vou dividir tudo em dois posts: um hoje e outro daqui uma semana.

A Bolívia é um país cheio de mistérios, e até agora, o lugar que mais me inspirou fascínio e respeito foi La Paz. A primeira surpresa de tirar o fôlego é visual. Na estrada a paisagem verde e plana vai cedendo lugar a montanhas e abismos, até que aparece La Paz e El Alto com a Cordilheira ao fundo, as duas cidades sendo vigiadas constantemente pelo pico nevado do Illimani. Dentro da cidade, qualquer esquina oferece a oportunidade mágica de registrar cenas lindíssimas. Caminhando pelo centro paceño, as ladeiras revelam casas antigas, museus e igrejas. Adentrar essas construções é como desvendar páginas empoeiradas e já esquecidas da história latinoamericana. Os pátios, móveis e mesmo as paredes já castigadas por pelo menos 500 anos de uso parecem sussurrar segredos antigos, mistérios indecifráveis, momentos de pessoas que ali viveram alegrias e angústias, generosidades e maldades monstruosas.

É bom deixar claro que pelo menos para mim a altitude foi só beleza. Sabe-se lá por que motivo, se sofri nos primeiros dias foi só pelo frio que se intensificou de repente. Como já comentei no post anterior, quando cheguei estava um clima agradável, fresco. No dia seguinte a temperatura caiu ao ponto de fazer com que eu me sentisse um frango no freezer. Se era um teste da cidade ou de divindades andinas, acho que passei. Ao ponto de que, quando fui embora da cidade e a temperatura foi subindo, me fazia cada vez mais falta o gelado vento paceño no rosto. Poderia ficar a vida toda naquele friozinho, aprendendo a ser elegante com agasalhos, caprichando no hidratante e sem ficar pregando ou com a cara brilhante por causa do suor.

Mil cores e histórias

Na Bolívia tudo tem história e algum tipo de explicação, que pode ter ou não lógica. Acrescente isso a um guia muito criativo que dá a tudo um toque pessoal de suspense ou graça, de acordo com o freguês. Assim é caminhar com Boris Garcia, cineasta, advogado, contador de casos e homem da minha vida. Foi assim que eu soube que na principal praça da cidade quem está no monumento central com ar de pompa é um simples e desconhecido toureiro espanhol, tudo por um engraçado engano histórico.

A principal praça e marco zero da construção de La Paz a que me refiro é a Plaza Murillo, que carrega no nome a homenagem a uma das principais figuras da história da Bolívia, Pedro Domingo Murillo, que fundou La Paz e lutou bravamente contra a dominação espanhola. Pela contribuição, anos depois de sua morte mandaram construir uma estátua para ser o monumento central da praça. Mas a imagem original, do mártir histórico, foi desviada e o que chegou foi a estátua de um toureiro. Como ninguém conhecia a cara de Murillo, não se percebeu na hora o erro e quem ficou lá, levando as honras todas por um bom tempo, foi o tal toureiro espanhol. Depois de um tempo, para consertar o equívoco, tiraram fora a cabeça do intruso desconhecido e colocaram a de Murillo. Tudo muito sutil.

Essa praça, porém, guarda muito mais da história boliviana do que simplesmente o engraçado engano da estátua de Murillo. Isso porque em volta dela estão os prédios onde trabalham as mais elevadas esferas do poder federal, inclusive o Palácio onde quem hoje ocupa a cadeira principal é o indígena Evo Moralles. Além dos milhares de pombos que sobrevoam a cabeça das pessoas e que são atrativos para turistas e crianças, é possível ver, sentado nos bancos da praça, enormes bandeiras da Bolívia tremulando majestosas, e buracos de tiros de vários calibres nos prédios ao redor.

As marcas são o orgulho de um povo que derrubou um presidente corrupto – Gonzalo Sanchéz de Lozada - sob uma chuva de balas. E são marcas recentes, ainda não cicatrizadas: datam de 2003, quando policiais e militares se enfrentaram na praça num duelo suicida. “Pela primeira vez a polícia esteve do lado do povo”, me disse Boris. No meio disso tudo lutaram trabalhadores paceños, estudantes, campesinos e mineiros, esses últimos explodindo tudo – inclusive a si mesmos – com suas dinamites. Esse vídeo aqui explica melhor o que aconteceu:




Da luta às festas

Além da coragem, o povo boliviano possui outra riqueza: a cultura. São tantas danças – cada uma típica de um lugar – tantas histórias fascinantes e loucas, tantas lendas, festas e cores... Sempre tem alguma coisa acontecendo em algum lugar da cidade. E isso é porque nem existe lei de incentivo à cultura. As pessoas trabalham o ano todo para comprar ou fazer roupas e bancar as festas sempre regadas à comida e muito singani e cerveja. O Boris me explicou que é caríssimo fazer parte disso tudo. É preciso se ligar a uma fraternidade. Além de pagar uma nota, é preciso também comparecer a todos os ensaios para que tudo saia com perfeição. Quem mata ensaio perde o dinheiro e a vaga na fraternidade.

Um dia acordei com uma marcha alegre que vinha da rua: banda, instrumentos típicos. Desde a noite do dia anterior a alegre canção ecoava pelas ruas, mas ao amanhecer estava muito próxima. Tanto que me fez ignorar o frio matinal, pular da cama e me lançar à janela. Na rua, os homens ainda estavam cambaleando pela ressaca da noite, e se esforçavam para dançar a morenada, seguidos de cholitas com polleras e xales coloridos e brilhantes. Era uma anarquia alegre, que se esforçava para ser o mais organizada possível. A festa foi em comemoração ao aniversário do bairro de Vila Adela, em El Alto, e durou o dia todo. “Essa dança está feia, você precisa ver uma morenada bem produzida”, falava Boris com desdém, enquanto eu olhava encantada aquilo tudo.

Cinema

Ao contrário do que muita gente pode pensar, a Bolívia tem diretores e filmes muito bons. Um dos que tive a oportunidade de assistir foi Zona Sur, do diretor Juan Carlos Valdivia. É uma produção interessante não só pela fotografia muito bonita, pelas imagens bem-feitas, mas também porque mostra as transformações sociais que estão acontecendo na Bolívia nesse momento sob a ótica de uma família tradicional e decadente.

Valdivia retrata bem os costumes paceños e a mentalidade machista que ainda predomina em La Paz, embora o foco seja a decadência da burguesia tradicional boliviana, com seus jailones (playboys) e peruas, e a ascensão de uma nova burguesia vinda de El Alto. É interessante a forma de o diretor mostrar como essas transformações afetam as diversas faixas etárias: a perua que trabalha demais, gasta demais e tem de vender sua mansão na Zona Sur para uma comadre cholita; o playboy que só quer aproveitar a vida e de tão dependente precisa da mãe para comprar camisinhas para ele; a criança que tem como referência os empregados da casa; a riquinha que vive um conflito sobre seu mundo cor-de-rosa e tenta adotar uma posição de protesto. Aqui está o trailler dele para quem ficar curioso:



E esse não foi o único filme boliviano que eu vi. Além dele assisti Escribeme Postales a Copacabana, de Paolo Agazzi, com uma fotografia muito bonita, pura poesia. Vale a pena demais assistir. Foi uma superprodução com efeitos super lindos, além da história ser mágica e falar muito dos costumes e crenças bolivianos, principalmente em torno do sagrado Lago Titicaca. Assisti também um filme mais antigo, Jonas e a Baleia Rosada, primeiro filme de Juan Carlos Valdivia. Super aprovado. Outra produção que tive a sorte de poder assistir foi Rojo, Amarillo y Verde, onde cada cor da bandeira da Bolívia foi uma história contada por um diretor boliviano, tipo três curtas num filme só, unidos por serem várias faces de um mesmo país.

Mas não é só na produção que a Bolívia está a todo vapor. La Paz tem vários cinemas espalhados pelas ruas da cidade e uma cinemateca linda, com programação alternativa que inclui filmes nacionais e latinoamericanos em geral. Essas diversas opções facilitam o acesso por um lado, mas por outro, o valor do ingresso, assim como no Brasil, não colabora para uma democratização do acesso ao cinema. Os valores variam de 25 a 30 pesos bolivianos. Pode parecer barato para um estrangeiro por causa do câmbio, mas para a população do país, onde grande parte recebe por mês pouco mais de 500 pesos, é um valor impossível.

Por falar nisso cheguei na cidade num momento de novidade: para azar dos cinemas do centro de La Paz, começa lá a tendência mundial das super salas de exibição. Foi inaugurado o shoping Mega Center, que terá uma estrutura gigantesca. Ainda falta muito da área dos cinemas, e as únicas lojas que já funcionam são as da praça de alimentação, mas quando ficar pronto será algo realmente monumental. Pode ser que o Mega Center não prejudique os cinemas do centro da cidade, já que fica na Zona Sur, super longe do centro de La Paz e ainda mais de El Alto, mas, bem... aqui em Goiânia a gente meio que conhece esse processo. Vamos ver o que acontece...
Para fechar esse post vou colocar um vídeo de uma música linda de uma banda chilena muito boa que conheci na Bolívia, e que passou a ser trilha sonora de vários bons momentos que vivi lá, Lucybell.

7 comentários:

Anônimo disse...

Gente, como minha amiga é uma pessoa culta. Tá, ela foi para a Bolívia de mochileira, namorou bastante e ainda teve tempo para fazer todas essas observações sobre o país. Nem preciso pesquisar mais nada sobre os bolivianos no google. Tenho todas as informações no seu blog, Lídia.
Beijos

Babados do Estágio disse...

Foi lindo viajar com vc...
nesse post... rs
Queria está lá sentindo o friozinho, comendo a SOPA... enfim vivendo um pouco mais e além...


Obs: Por que um frango???

Bjusss

M. disse...

Poxa, não sabia que a Bolívia tem tanta coisa bacana assim.. sua viagem deve ter sido ótima né xD

Fran Rodrigues disse...

Um lugar encantador e uma jornalista encantada. Uma leitora que partilha, ainda que na memória, de boa parte dessa magia.
Resultado: essa narrativa linda, guia de viagens, roteiro de belezas escondidas e autodescobertas.

Ah, Lidoca. Que bom te ver tão grande assim!!!

;*

Rafael Albuquerque disse...

que vontade deu de conhecer a bolívia agora... vc é um encanto e encanta o lugar que visita. faz-nos ter a vontade de passear, viajar nesse lugar encantado.

Meny Sorrá disse...

ola senhorita,
sumida da gente né!
sds de vc!
Bem, adorei o formato do blog, legal mesmo e tb "Enfim, Bolívia! - Parte 2 - La Paz Encantada".
O texto e recheado de detalhes e por isso a nossa mente é trasportada para o local que vc esteve. Vê se aparece na Paróquia, sumida. Bjos e DEUS guie seus passos.

thiago disse...

Olá! Muito show seus escritos sobre a Bolívia! Também adorei La Paz quando estive por lá...
Volte a escrever! Conheci seu blog hoje e adorei.
Beijos